Nas conferências
depois reunidas sob o título “A Verdade e as Formas Jurídicas”, Michel Foucault
demonstrou laboriosamente que alguns dos modelos mais praticados pelo pensamento
teórico ocidental (filosófico, científico, e até mesmo pré-filosófico) tiveram
origem em práticas judiciárias, como o inquérito
e o exame.
Em ambos os
casos, trata-se de ir à busca de uma verdade que se esquiva ao olhar cotidiano,
que requer uma diligente procura ou investigação.
O Tratado Ser e Tempo, destinado a recolocar em
cena, na ordem do dia, a questão do ser,
também se caracteriza pela escolha de um modo especial de investigar. Isto fica
claro quando se percebe, em seu índice, uma longa parte introdutória destinada
a reelaborar a referida questão.
Poderia parecer
que um tal procedimento é desnecessário. Afinal, por que Heidegger não pergunta
pelo ser à maneira tradicional: “que é o ser”?, e parte imediatamente à cata da
solução da questão? A resposta heideggeriana para isto é mais do que conhecida;
mas não é ela o foco do presente texto.
Ademais, uma
simples análise linguística mostraria algo estranho ou pertubador ao apresentar
o ser como verbo substantivado em uma frase interrogativa direta, precedido justamente
do ser como verbo flexionado (é)...
Todavia, o que
mais chama a atenção na apresentação heideggeriana do problema do ser é a
aparição de três termos que, numa primeira mirada, parecem extremamente
assemelhados, quase indistinguíveis: o interrogado, o questionado e o
perguntado.
Em vez de
analisar por ora cada qual, importa tentar decifrar as razões desta
tripartição, e o seu papel na obra. Heidegger silencia a respeito, e apenas a
apresenta do jeito como está, sem justificar este procedimento. Contudo, uma
simples observação revela mais um exemplo daquela interessante tendência
observada por Foucault: o uso de procedimentos jurídicos nas investigações
teóricas, neste caso, na investigação ontológica.
O homem enquanto
Dasein é o interrogado, ou seja, é o alvo de um interrogatório dirigido pelo
ontólogo. Interrogatórios recordam investigações policiais e judiciais,
certamente. Mas poderia se tratar de uma aparência.
No entanto, a
impressão se confirma quando se atenta para os dois elementos seguintes. O questionado, aquele que é colocado em
questão, é o ser. Ser colocado em questão significa: ser o sujeito investigado
quanto ao cometimento de uma ação ou omissão, de uma conduta. O Ser é o réu, o
grande procurado pela Ontologia.
A ontologia
interrogará o Dasein na procura pelo
Ser. O Dasein é interrogado como
testemunha – Heidegger dirá adiante que ele possui um acesso privilegiado à
compreensão do Ser.
Mas o que se
indagará do Ser ao Dasein? Qual é
perguntado? Qual é o fato ou conduta que se investiga? Resposta: pergunta-se
pelo sentido do ser. A Ontologia
interroga o Dasein, questionando-o
sobre o Ser, perguntando-lhe se o Ser faz/possui sentido.
Com isto, tem-se
os três elementos da pergunta heideggeriana: a testemunha, o réu e o crime. E
tem-se, uma vez mais, a presença da técnica jurídica na elaboração do método filosófico.
Mas será que Heidegger se mantém fiel à metáfora (ou será analogia?) jurídica?
E, sobretudo: será que ele a compreende plenamente? Aí já é(são) outra(s)
história(s). Outros inquéritos.
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