2 De Platão a Agostinho
Agostinho
inicia o seu estudo sobre a natureza do bem identificando este ao conceito de
Deus, e mais do que isto: colocando-o, ao mesmo tempo, como ápice ontológico e
axiológico da realidade: "O supremo Bem, acima do qual nada existe, é Deus3".
Nisto, sua concepção se assemelha muito à platônica, na qual o Bem também é o
zênite do Ser, enquanto Idéia suprema, matriz e paradigma de toda a realidade,
equiparada no livro VIII da República ao Sol, por ele considerado a fonte do
ser, da luz e da vida de todos os entes mundanos4.
Uma
questão, porém, se coloca: como explicar que a mesma estrutura ontológica
hierárquica se aplique a uma visão de mundo filosófica (Platão) e outra
religiosa (Agostinho), numa das quais vigora uma askesis teorético-contemplativa, enquanto
noutra a elevação é de índole prático-devocional? A resposta para isto passa,
justamente, pela consideração de que mythos,
logos, fé, razão estão
presentes em ambas as ordens de idéias.
A
princípio, a diferença sumária entre a verdade descoberta e a verdade revelada
consiste tão-somente no modo de aquisição. Evidentemente, no contexto de certas
doutrinas reveladas, bem como de certas concepções filosóficas elaboradas, tal
distinção se avoluma com critérios e elementos mais concretos, de modo que
certas matérias serão consideradas objeto eletivo da revelação ou da reflexão.
Assim,
tanto o Bem platônico quanto o Bem agostiniano são objetos de fé e de reflexão,
embora de maneiras diversas. Platão recomenda a famosa "dialética
ascendente" (synagoge)5 para o homem elevar-se da impressão
sensível da aisthesis à verdade inteligível da noesis. Porém, recorde-se, uma
tal dialética nunca se conclui no trajeto do útero à cova, por interferência do
corpo animal que obscurece o acesso da psychè à verdade. Logo, o Bem platônico
também é postulado como um artigo de crença (pistis, em grego), vez que
nem mesmo o Divino Poeta a ele teve acesso. E toda a sua sofisticada dialética
de inspiração socrática é uma grande apologia deste topos ouranos (lugar celeste) ainda inacessível à
experiência direta. Trata-se, em suma, defesa racional da fé (da sua fé
pessoal) por parte de um filósofo.
De
maneira semelhante, o Bem agostiniano também é incognoscível em absoluto; dele
só são possíveis apreensões parciais, ínfimas até6.
Também ele é crido e experienciado pela fé, e é incalcançável pelo ente finito
ainda preso à dupla limitação da corporeidade e da temporalidade. A
argumentação agostiniana (de que ele é imutável, eterno, imortal, etc), não
provém de uma gnosis direta, mas de uma demonstração
por absurdo das consequências que decorreriam da não-admissão do postulado do
Bem Supremo. Também aqui a razão a justificar a fé.
Por
outro lado, o dístico mythos e logos também aparecerá, de forma diferente,
num e noutro. Em Platão, o mythos se mostra pela recepção crítica da
Cosmogonia olímpica, bem como pela própria alegorização intencional em muitos
de seus Diálogos. Em Agostinho, na assunção do legado cristão, sobretudo dos
evangelhos, cheios de mitologemas acerca do personagem histórico Jesus de
Nazaré, bem como pela própria alegorização de sua vida nas Confissões, em que ele chega a descrever
imaginativamente suas ações e comportamentos na primeira infância, para
demonstrar a concupiscência da carne e a providência divina em cena. Em contrapartida, o logos se apresenta no Divino Poeta sob a
veste da Idéia,
evidenciando o caráter inteligível do real, ao passo em que, para a Águia de
Hipona ela se exibe na forma joanina do Verbo criador que é a Luz e se fez
carne.
Obviamente,
a disparidade dos pontos de partida assinalará um progressivo afastamento de
Agostinho em relação a Platão. Assim, no mesmo parágrafo inicial do texto
supra-citado, eis que ela já pondera: "Todos os outros bens têm nele a sua
origem, mas não participam dele" (op.
cit., idem) . Ora, os entes
sensíveis e temporais, sujeitos à geração e a à corrupção, participam, para
Platão, das Idéias que manifestam no mundo fenomênico: assim, os homens
participam da humanidade, e assim por diante. Agostinho, no entanto, ao negar
outra realidade inteligível suprema além do Bem, nega a participação dos entes
em Deus, vez que isto abriria espaço para o panteísmo, que ele combateu em
favor da distinção ontológica abismal entre Deus e as criaturas.
De
qualquer sorte, as distinções não significam incompatibildades: é possível
identificar uma fé e uma razão platônicas e agostinianas, ainda que somente
neste último as mesmas tenham sido tematizadas explicitamente. Contudo, é
imperioso reconhecer que somente para Agostinho a relação entre fé e razão se
torna um problema crucial, tomando o lugar da reflexão sobre a relação entre
religião e filosofia, a qual passou a ser subordinada ao mesmo.
Parte III: http://paragensfilosoficas.blogspot.com.br/2013/09/fe-e-razao-de-platao-agostinho-de_18.html
Parte III: http://paragensfilosoficas.blogspot.com.br/2013/09/fe-e-razao-de-platao-agostinho-de_18.html
Um comentário:
Tô estudando pro concurso. Você escreve bem pra cacete. Obrigado pelo texto.:3
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