Hermeticamente (fechado): todo compartimento ou recipiente que não deixa escapar nada – nem mesmo uma gota d’água; nem sequer uma pedra. No mundo da tecnologia, é um advérbio elogioso para produtos industriais, como uma lata de sardinha...
Hermético: tudo aquilo que é secreto, sigiloso, oculto. No mundo da tecnologia, um adjetivo elogioso para produtos intelectuais, como um texto de física ou um algoritmo criptografado.
Mas, de onde é que vêm estes dois termos, e por que eles significam o que significam? Não é preciso matutar muito pra responder à primeira pergunta: vêm de Hermes, o lendário sábio egípcio, cuja provável existência histórica se diluiu nas brumas da mitologia. A segunda exposta, contudo, já não é tão óbvia: há que ajuntar algumas pistas para tentar encontrá-la.
Verdade ou não, foi atribuída a Hermes a introdução (ou talvez invenção) da escrita entre os egípcios. Lembre-se que se trata da velha escrita hieroglífica, hoje sinônimo de mistério ou enigma.
Talvez por isto sua personalidade tenha se confundido com a do deus Toth, tido pelos egípcios como o inventor da escrita, num fenômeno semelhante ao que ocorre no mundo cristão, com a frequente identificação entre Jesus de Nazaré e aquele a quem ele chamou de "Pai".
Além disso, Hermes teria sido o autor (ou, no mínimo, inspirador), da doutrina que leva o seu nome: Hermetismo. Esta doutrina estaria baseada no princípio segundo o qual "assim no céu, assim na terra"; ou, dito de outra forma, "o que está em cima é igual ao que está embaixo".
Modernamente, esta máxima é formulada assim: "tal o macrocosmo, tal o microcosmo"; e, para muitos, encontra seu exemplo perfeito na semelhança material entre o átomo e o sistema solar e na semelhança espiritual entre o Homem e Deus.
Está explicado, então: um texto é hermético quando não é decifrável por aquele que o defronta, como um pergaminho de geometria abstrata nas mãos de um analfabeto ribeirinho do velho Nilo. E um frasco é hermético quando é fechado, vedado, sem contato com o exterior, como talvez tenham sido as sociedades de adeptos do Hermetismo, ao longo dos séculos.
Reparando bem, tem alguma coisa estranha aí: hermético no sentido de "secreto" não representa algo contrário à Era da Informação, à Civilização do Conhecimento? E hermético enquanto "fechado" não significa, no mínimo, um paradoxo em face da abertura, da integração e da circulação de ideias e mensagens na Sociedade em Rede e no Mundo Globalizado?
Sim e sim. Nesse show de realidade em que vivemos, tudo acontece à luz do dia – até mesmo o que antes pertencia ao interior do laboratório, do templo, da alcova e do sanitário. Do nascimento à morte, do crime ao sexo, tudo corre de boca em boca (de olho em olho).
Sim e sim. Nesse show de liberdade em que vivemos, tudo está ao alcance de todos – até mesmo o que pertencia ao interior do átomo, da Terra, do corpo ou da mente. Da Universidade à Bolsa de Valores, do fundo do Mar à Lua, do Espaço Cósmico ao Terceiro Céu: todas as portas estão abertas a quem por elas pague.
Mas antes que o pai da Escrita me impeça de continuar este texto, eu partirei em sua defesa. Em primeiro lugar, a Escrita não nasceu para guardar segredos, mas para transmitir – ao hoje, a lição do ontem; ao aluno, a lição do mestre. Ela nos salva dos riscos da oralidade: o esquecimento do professor, o mal-entender do aluno, a morte prematura do guardião do saber. Um texto escrito é tão misterioso para um analfabeto como um doce preparado o é para um não-cozinheiro.
Em segundo lugar: conhecimento é poder, e não raro se transforma em arma. Proteger certos saberes para os que possam abraçá-los é como ocultar certas verdades à criança pequena, ou como dividir as séries na escola conforme a idade mental. A uns, é impossível entender certas coisas; a outros, é indevido ter acesso a elas. Há o que deve ser aberto para todos. Há o que deve permanecer fechado para poucos. E há o que só se deve abrir aos que se esforçarem para tanto.
No fim das contas, para quem está pronto nada permanece oculto. E os antigos egípcios ensinaram isto ao mundo, soberbamente. Não sabemos ao certo como foram feitas as Pirâmides, nem temos capacidade para imitá-las, em seu encaixe perfeito (hermético!) que dispensa argamassa. Mas julgamos, há muito tempo, com arrogância (e inocência), que elas foram erguidas como singelos sarcófagos para faraós que acreditariam poder ressuscitar um dia.
Aos poucos, porém, vamos descobrindo algunas cositas más: que a Grande Pirâmide está construída em cima do centro de massa da Terra, no meridiano mais perfeito; que representa, em suas medidas, a distância exata da Terra ao Sol, a duração exata do ano sideral, o número pi, a proporção áurea, o logaritmo neperiano e uma série imensa de outras surpreendentes "coincidências". E, assim, nos damos conta de que as Pirâmides e a Esfinge constituem um grande e silencioso Texto escancarado à luz do sol. Uma carta aos pósteros. Um aviso aos navegantes.
Enquanto isto, o que fazemos nós, que nos gabamos de nossa Sociedade Aberta, de nossa Democracia, de nossa (Pós) Modernidade? É bem verdade que escrever e ler está ao alcance de cada vez mais gente; e é certo também que passamos o dia inteiro recebendo e enviando informações – por e-mail, SMS, memorando, telegrama falado, emissora de televisão, sinal de fumaça, aviãozinho do tráfico, porta de quitanda ou pombo-correio.
Porém, cada vez mais nossas mensagens se esvaziam de qualquer teor comunicativo; mais se repetem viciosamente numa inter-remissão circular; mais veiculam informações não-verificadas; mais transmitem conhecimentos superficiais, frequentemente falsos; mais compartilham memes inúteis; mais repercutem factóides; mais reverberam a opinião pública (de quem?); mais disseminam juízos de valor irresponsáveis; mais violam direitos da personalidade como intimidade, honra, imagem; mais consolidam separações de grupo; mais pulverizam todo autêntico diálogo.
Tá certo que os escribas de Tebas ou de Mênfis detinham não só um poder social considerável, como também uma espécie de monopólio da verdade. Mas, e nós, que hoje formamos uma Civilização de escrevinhadores, uma Rede mundial de escribas, o que fazemos com o nosso poder de escrever? Quantas vezes maquiamos a contabilidade em nossos balanços, fraudamos a justiça em nossas petições, deturpamos a realidade em nossas reportagens, enganamos em nossas propagandas, manipulamos em nossas estatísticas, sonegamos em nossas declarações de imposto, mentimos em nossas atualizações de status?
Tá certo que os sacerdotes de Mênfis ou de Tebas ocultavam os saberes ao povo que os sustentava. Mas, e nós, que hoje formamos uma Civilização de conhecedores, uma Rede mundial de leitores, o que fazemos com o nosso poder de ler? Lemos guerras de micro-postagens difamatórias, feeds de noticiados que se auto-noticiam, resumos de resumos de resumos de livros, monografias a respeito de dissertações sobre teses, listas de manchetes, ofertas de produtos, mensagens edificantes, programações de casas de show e... vídeos(?).
Se a escrita deve transmitir o que há de ser perene, para que escrevemos nós, se nossos arremedos de frase ou texto são mais impermanentes que a própria palavra oral? Para que, se a própria substância ou assunto do que é dito também raramente merece perdurar?
Se a escrita deve abrir o que outrora era fechado, para que escrevemos nós, se nosso escancaramento virtual é a contrapartida nefasta de muitos severos fechamentos: do livro, do diálogo, da observação, da tradição, da reflexão, da experiência sensível?
Se a escrita deve explicitar o que alhures foi secreto, para que escrevemos nós, se a nossa transparência não é a da janela que liberta a vista para um mundo de matéria e espaço, mas o da tela que a captura e prende a uma superfície vítrea luminosa?
Ó velho Hermes! Tu, que recebeste, dos teus admiradores, o honroso título de Trimegistos (três vezes grande), volta a este mundo e ensina o homem a desescrever... antes que o colapso total sobrevenha e o des-ensine a escrever... antes que o colapso total torne este pequeno globo azul um hermético monte de cinzas, hermeticamente fechado, que até deixe escapar uma pedra, mas não deixe escapar nenhum homem.
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