O Muro e o Porteiro



O capitalismo é um macro-sistema econômico pautado pela propriedade privada dos meios de produção, pela valorização da posse e do lucro, e nutrido por todo um ideário liberal. Eu pertenço a um mundo capitalista.

O federalismo é um meso-sistema político pautado pela descentralização dos poderes de decisão, pela valorização da autonomia regional e nutrido por todo um ideário democrático. Eu vivo numa república federativa.

O condomínio é um micro-sistema urbanístico pautado pela integração entre unidades de habitação, pautado pela valorização da segurança e da privacidade, e nutrido por todo um ideário burguês. Eu moro num condomínio.

O que é que todas estas instâncias existenciais possuem em comum?

Resposta: uma relação de co-pertinência geográfica, uma proporção escalar: o meu apartamento está no condomínio, que está na cidade, que está no país, que está no mundo... que está na minha casa.




É de se esperar que esta profunda interligação se reflita na forma de uma harmonia, de uma sincronia de tendências. Numa espécie de efeito cascata (o nome pomposo disso é causalidade decrescente), o ideal é que as mudanças em esfera mundial, sobretudo as boas, repercutam no interior do meu lar – e não somente a partir do computador que está no quarto.

No meu caso, porém, isto parece não estar acontecendo. Será que contigo sucede o mesmo?

Repare e conclua.

Em nível mundial, o mundo conheceu, no fim dos anos 80, o colapso do sistema socialista, a única grande alternativa existente ao capitalismo. Esta fase de transição foi assinalada pelo evento emblemático da queda do muro de Berlim, que separava a gloriosa capital alemã em duas metades, cada qual pertencente a uma meia-Alemanha. Hoje, o mundo caminha (ou pretende) para a integração.

Em nível nacional, o federalismo brasileiro reencontrou o caminho da democracia no mesmo período, com o fim do regime ditatorial militar, que havia erguido um muro de poder e violência a separar os cidadãos brasileiros da participação política nos rumos do país. Hoje, o Brasil caminha (ou pretende) para a integração.

Em nível local, contudo, não tenho boas notícias: será que você as tem? Do lado de cá da cidade, o Condomínio Parque Lagoa Grande (que curiosamente surgiu naquela época) parece andar na contramão da história. Enquanto o Brasil se globaliza e o mundo universaliza, o CPLG quer fechar às portas à Globalização, a portaria de acesso à Rua Araraquara, erguendo um novo muro em pleno século XXI. Nada mais anti-burguês do que isto...

Este aparente descompasso me deixou intrigado: estaria o meu condomínio violando a proporção e a interligação geográficas das quais eu falei acima? Ou será que o desarranjo é apenas aparente, e o que acontece aqui representa um sinal para o que vem por aí mundo afora?

Na últimas eleições municipais, os candidatos apoiados pelo partido da presidente, aqui e acolá, alardearam mil presságios tenebrosos em caso de derrota do seu 'time', como se a escolha de um prefeito doutra legenda acarretasse o emparedamento (ou melhor, emuralhamento) do município
pelos governos federal e estadual. Nada mais antidemocrático do que isto...

Na atual crise européia, a Alemanha e a França estão impondo severas
condições aos países endividados, obrigando-os a erguer verdadeiros “muros fiscais” onde antes havia a livre decisão do gasto governamental, sob pena de os expulsarem para fora dos muros do clube econômico. Nada mais anti-liberal do que isto...

E então? Será que, em vez de interligados por uma rede de pontos de contato, estamos separados por um labirinto de muros de isolamento? Não sei se é para tanto. Mas se há algo de podre no Reino da Dinamarca, imagine a situação no Mundo das Trademarks, na sede desta Comarca e na quadra da minha barca... O CPLG pretende, com o fechamento de uma portaria, cortar custos na folha de pagamento porque, apesar de ter quase todas as unidades ocupadas, o índice de inadimplência da taxa de condomínio é exorbitante. A solução, portanto, seria reduzir o número de porteiros.

Os Estados federados também estão embarcando na mesma tendência. A princípio, descentralizando e delegando funções para as regiões e cidades; mas agora, sobretudo, também fechando portas: de salas, cargos, repartições, órgãos, ministérios, e assim por diante. A solução, portanto, seria reduzir o número de funcionários públicos.

O mundo do capital, por fim, exibe igual aspecto: terceirizando, terciarizando,
automatizando e fragmentando, eis que as grandes empresas hoje fecham vagas, setores, filiais, etc.

A solução, portanto, seria reduzir o número de trabalhadores. Mas, e como ficará o porteiro? Nesse mundo em constante mudança, deslocamento e fluxo,
o porteiro é um paradoxo: sua função é, basicamente, ficar parado para que outros passem, organizar e proteger o ir e vir dos moradores (e eventuais demoradores).

Mas, e como ficará o funcionário público? Num Estado cada vez mais ausente, impotente, incompetente, ele é uma espécie de porteiro, sem o qual as grandes viagens do capitalista sufocariam, cada vez mais, os pequenos passos do trabalhador. Sua função é não produzir para que outros produzam (e alguns outros usufruam).

Mas, e como ficará o trabalhador? Num mercado cada vez onipresente, ele também é um tipo de porteiro: sua função é produzir parado para que outros vendam e cresçam. É quase não ter nada para que outros juntem. É pagar o que não deve para que outros fraudem.

Sem porteiros, o condomínio se dissolverá, e se confundirá com o bairro. Mas não vejam nisto uma integração, e sim o seu contrário: uma desintegração.

Sem funcionários públicos, o Estado se dissolverá, e se confundirá com o mercado. Outra desintegração.

Sem trabalhadores, o mercado se dissolverá, e se confundirá com a guerra. Completa aniquilação.

Um lembrete para você, condômino inadimplente: você também é porteiro, viu?

Locatário, você é porteiro do locador. E você, locador, que se diz proprietário, é porteiro do Banco Financiador e da Empreiteira. O dinheiro que não repassas ao trabalhador da portaria, um dia não será repassado a você, pois terá ido andar em outras bandas.

Um lembrete para você, cidadão sonegador: você também é funcionário público, viu? Você trabalha um terço do seu ano, de graça, para o Estado; mas trabalharias ainda mais, de graça, para o capitalista. E cada real que não pagas de custeio ao fiscalizador tu o pagarás de juros ao aproveitador.

Um lembrete para você, capitalista: você também é trabalhador, viu? Cada real que acumulas, para além do que é legítimo, tu o devolverás na forma de dispêndio de trabalho inútil na proteção do teu patrimônio contra a fraude, a crise e a concorrência.

No fim das contas, tudo passa. Mas hoje, mais do que nunca, há um perigo, o perigo supremo: o de que tudo passe e todos fiquem. Do lado de fora do muro.

E sem portaria de acesso.

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