Para Foucault, a Episteme do século XVIII é marcada pela
tendência catalográfica e classificatória de organização completa do saber,
numa perspectiva que podemos chamar sistemática e não sistêmica, na medida em
que se ocupa mais de ajuntar peças de um quebra-cabeça do que desenvolver a
realidade observada a partir de um princípio interno e regulador.
Tal seria o caso da História
Natural, espécie de precursora pré-teórica da Biologia moderna. Trata-se de um
campo em que a natureza está próxima de si a ponto de facultar classificações,
mas ainda distante a ponto de exigir análise e reflexão. É aquilo que se mira
diante dos olhos, se apreende em seu lugar e se observa.
Mesmo o historiador natural que
olha pelo microscópio, podemos dizer, não o faz para ver o fundo dos seres, mas
para descortinar uma espécie de micro-paisagem, na qual ele efetua também
classificações, que ainda não constituem a análise genética do pensamento
biodinâmico do século XVIII.
A História Natural é associada ao
malogro do cartesianismo ante os seres vivos, no sentido de que ajustar a
Natureza como um grande mecanismo não dá conta de perceber-lhe a dinâmica
profunda que se expressa nas formas catalogadas, mas que as transforma
continuamente umas nas outras, e que altera o panorama, fazendo surgir e
desaparecer espécies e sistemas em profusão incessante, e em interação com
fatores amiúde contingenciais, como descobriu o século XVIII.
Todavia, a mesma Episteme que
autoriza a mecânica e Descartes a D’Alembert, é a que promove a emersão da
robusta e detalhada história natural de Tournefort a Daubenton. Não foi preciso para esta surgir que a
natureza se obscurecesse adensasse e historicizasse, que ela se transformasse
em acontecimento (como será no XVIII) mas que a história se tornasse natural e,
pois, observável como fato e classificável como forma.
A história em Aldrovani, no século XVI, era o ser mesmo na rede
semântica depositada sobre ele e que o ligava ao mundo. Cada ente evocava uma
série de outros, predador, presa, semelhanças, contrastes, significados
míticos, alegorias literárias.
Na época anterior à História Natural, não havia distinção entre visto,
transmitido e imaginado, ou entre
observação, documento ou fábula. Mas não por hesitação da ciencia, mas por
serem os signos vistos como parte das coisas até virarem modos da representação.
Assim, seria anacrônico dizer que
o sistemático Jonston não sabia mais que o analógico e comparativo aldrovani em
meio século. A diferença está na falta.
A trama de discursos e sentidos sobre as
coisas rui, e o ser aparece, nu, para ser observado em si mesmo. A HN se instala
na distância silenciosa, mas articulada entre coisas e palavras.
Nesta nova perspectiva, as coisas beiram o discurso porque permeiam a
representação. Logo, não é quando se
pára de calcular que se começa a observar, mas quando a análise se antepõe ao
nomear, o ver ao dizer.
Logo, a ciencia natural tem uma arqueologia própria, ainda que ligada, pela
correlação e simultaneidade, à mathesis universal e à teoria geral dos signos.
Os modos como a compreensão geral da realidade, a interligação dos saberes e a
organização dos discursos são efetuadas a cada período histórico haverão de
repercutir no modo como os saberes específicos se transformam ao longo do
tempo.
Porém, eles também possuem suas
dinâmicas próprias de mudança e reformulação, de tal maneira que, inclusive, a
influência positiva ou negativa também pode se dar na contramão: um novo
método, uma nova forma de representar, a elaboração de novas categorias ou
conceitos-chave em uma ciência ou saber setorial também pode, a depender da
intensidade com que se manifeste, repercutir no todo geral da cultura e em diversas
ciências em particular.
É isto que acontecerá, por
exemplo, na segunda metade do século XVIII, quando o darwinismo se tornará uma
espécie de paradigma interpretativo aplicado, com acerto e erro, a quase todas
as ciências então vigente.
Em todo caso, a História Natural
do século XVIII volta a ser o que era
para o grego. A purificação da
história faz com que seu primeiro alvo seja a natureza, pois que prescinde de
documentos de arquivos, mas de espaços claros como herbários, nos quais
apareçam virtualmente analisados e portadores apenas do nome. Não é mais
preciso busca,r em livros sobre livros sobre livros, referências sobre
referências, sentidos transversais ou coisas do genro. A coisa mesma aparece e
se mostra, em seus traços morfológicos, e indica os sinais mais importantes
(por exemplo, garras, asas, presas) a partir dos quais se há de incluí-la em
algum lugar próprio e singular na ordem geral dos seres.
O jardim botânico era de fato
interessante há tempos; mudou, todavia, o espaço de observação. No renascimento, a estranheza animal era
espetáculo: festas, torneios, lendas. Com o Iluminismo, passou-se do mostruário ao quadro, do teatro
ao catálogo.
Após este puro quadro das coisas,
o séc. XIX poderá voltar a falar sobre as palavras., não por comentário, mas de
modo positivo como na HN. A conservação
dos documentos, no fim da idade clássica, era mais do que atenção à espessura
da Hisória, era forma de introduzir uma ordem que já se mostra entre os seres
vivos.
Daí, os historiadores do séc. XIX pretenderão libertar a História da
racionalidade clássica, e submetê-la à violência irruptiva do tempo.
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