Após
afirmar que não há continuidade paradigmática, ou seja, que os paradigmas se
sucedem de formas descontínuas, por rupturas ou saltos, eis que Boaventura
anuncia uma tese aparentemente contraditória em relação à primeira: há um
pensamento de transição. E este pensamento é a utopia.
Como
é que a utopia faria esta ligação entre dois paradigmas? Como é que ela
conduziria do velho ao novo, sem pertencer inteiramente ao velho? E como é que
ela conduziria ao novo, sem saber exatamente a direção e o momento nos quais
ele há de irromper?
Há
uma máxima atribuída a Einstein que parece concordar com esta perspectiva.
Segundo o grande físico, ‘nenhum problema pode ser resolvido pelo mesmo estado
de consciência que o criou’.
Evidentemente, trata-se de uma afirmação relativa
a um indivíduo isolado, a alguém diante de uma questão ou pergunta. Mas é
possível transpô-la, analogicamente, para o nível cultural coletivo, vislumbrando
os paradigmas como ‘formas de consciência coletivas’.
Como
a consciência não é uma potência absoluta (não é onisciente), cada grau de
consciência, relativamente, é também um grau de inconsciência. Cada paradigma
conhece luminosamente certo grupo de realidades focais, vislumbra
penumbrosamente um halo de realidades periféricas e ignora completamente
algumas realidades além do seu alcance.
Porém,
um olhar mais atento revelará que a inversa da proposição acima também é
verdadeira: cada grau de inconsciência é também um grau de consciência. Há
coisas que, embora ainda na penumbra marginal de um paradigma, podem ser
vislumbradas por aqueles que se movem dentro deste paradigma. Pessoas
pioneiras, que já anteveem formas na penumbra, e chamam a atenção para elas,
fazendo com que, aos poucos, a atenção cultural se volte para elas, até que,
num salto, o foco de luz incide sobre aquela realidade outrora marginal, e
emerge um novo paradigma.
Assim,
complete-se a asserção de Einstein com esta de Heidegger: ‘muitas vezes, um
pensamento novo precisa usar a linguagem daquilo que pretende destruir’. Isto
sucede tanto porque os contemporâneos, completamente imersos no paradigma, não
possuem ouvidos capazes de escutar a nova mensagem, seja porque faltem para
ela, inclusive, palavras novas.
Com
as lunetas da utopia, ainda em pleno mar, já se vislumbra terra firme.
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