Foucault - As Palavras e as Coisas - O contínuo e a catástrofe no quadro das formas naturais

Na articulação entre Estrutura e Caráter, e no antagonismo entre os paradigmas do Método e do Sistema, tais como elucidados por Foucault (e aqui apresentados nos estudos precedentes), um problema ínsito jaz na História Natural: e se a estrutura não puder se tornar caráter? E se o nome próprio não puder gerar o nome comum? Quem garante que as descrições não terão diversidades de caracteres irredutíveis a estruturas comuns?

Para que um simples caráter apareça, um elemento duma estrutura se repetirá. A ordem da diferença acarreta certo jogo de semelhanças. Trata-se de um problema isomorfo ao da linguagem: o nome comum exige semelhanças imediatas que permitissem aos elementos significantes ensejar designações coletivas. O que há de visivelmente característico entre todas as coisas que recebem o nome animal?

Entretanto, na linguagem não se exige identidade verdadeira, mas apenasuma identidade sensível, apreensível à imaginação. Coisa bem diferente da língua bem feita que pretende ser a História Natural, na qual deve haver continuidade na natureza. A continuidade, para o Sistema, está na justaposição sem falha das regiões em que os caracteres se separam com clareza.

Assim, basta uma gradação ininterrupta para se fixar o valor de uma espécie, e sendo todos os valores ocupados por espécies reais ainda que desconhecidos. Para Lineu, o sistema indica as plantas, até as que não mencionou, o que não pode fazer um catálogo meramente formal e extrínseco.

Já nos métodos, em contrapartida, a continuidade não é este postulado negativo da ausência de lacunas, mas a exigência positiva de que a natureza seja uma grande trama, onde os seres se assemelham gradualmente, sendo os mais próximos infinitamente semelhantes, donde decorre que todo corte que não indique a menor diferença de um individuo, mas categorias amplas e abstratas, é irreal.

Trata-se, então, de uma continuidade de fusão, em que toda generalidade é nominal. Para Buffon, em verdade, os gêneros só existem na nossa imaginação. Bonnet: na natureza não há saltos, há razões para a passagem de um ser a outro. A exigência do contínuo se desdobra ao se perceber que se possa experimenta-lo plenamente.

Mas, se isto um dia acontecesse, a HN seria desnecessária, pois estaria absorvida na linguagem, e a gramática geral abrangeria a taxonomia dos seres. A natureza oferece de modo retalhado (há seres possíveis não constatados) e confuso (gêneros próximos em lugares distantes, animais imperfeitos perto de plantas imperfeitas, o ouro misturado, a violeta e o carvalho).

Tal confusão, no entanto, é fruto da cronologia das eras planetárias. Espécies surgem  se extinguem.  A superfície taxonômica e a linha do tempo definem a geometria da natureza.

Observa-se, portanto, que o fixismo e o evolucionismo supostos pela historiografia tradicional tinham a mesma episteme; a classificação e a continuidade atendem ao mesmo influxo, complementares e irredutíveis entre si. A serie dos eventos não prescreve o tempo interior dos seres, mas as intempéries.

Não há, pois, evolucionismo nem transformismo no pensar clássico, pois o tempo não é, ainda, princípio de desenvolvimento, mas indicação de revolução possível no quadro espacial dos seres.


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