Como se viu nos estudos precedentes deste importante capítulo de As Palavras e as Coisas, A História
Natural não se dissocia da linguagem. Não porque esta lhe fornece métodos ou
conceitos, nem porque as duas são formas duma racionalidade mais geral, mas porque
a disposição do saber, na episteme clássica,
ordenava o conhecimento dos seres pela possibilidade de representá-los num
sistema de nomes.
Houve sim, a região da vida, pesquisas além da classificação e análises
além de diferenças e identidades. Mas elas também eram permitidas no debate por
um a priroi histórico.
Este saber não é um equipamento de problemas e fenômenos instigantes, nem
um saber sedimentado que facultasse vôos maiores, ou a mentalidade ou quadro de
pensamento que reunisse interesses crenças e opções teóricas. Este é saber que
recorta na experiência um campo do conhecimento possível, define o modo de ser
dos objetos que aí surgem, arma o olhar cotidiano e condiciona o discurso.
No séc XVIII é a HN o saber paradigmático. Contemporânea da linguagem,
delimita o descritível e o ordenável, analisa as representações na lembrança,
fixa identidades, signos e nomes. Classificar e falar são possíveis porque a
representação é voltada ao tempo, à memória, reflexão e continuidade.
A HN só pode ser linguagem se bem feita e universal, pois a língua
espontânea e imperfeita, entre a proposição, a articulação, a designação e a
derivação, deixam margem para o individual, nos preconceitos, hábitos e
sentimentos e suas centenas de línguas que diferem nas palavras e na relação
com a representação.
Na HN, toda proposição tem que ser recorte constante do real (atribuindo
à representação o que aí se articula), e se a designação indicar o lugar do ser
na disposição do conjunto. Na linguagem, a função do verbo é universal e vazia,
prescrevendo somente a forma mais geral da proposição, mas é dentro desta que
os nomes se articulam.
A estrutura da HN faz os dois, articula todas as variáveis que podem ser
atribuídas a um ser; e se lá (na linguagem comum) a designação está exposta ao
acaso das derivações, que a estendem aos nomes comuns, o caráter permite marcar
o ser e situá-lo dentro das generalidades.
A nomeação é a passagem da estrutura visível ao espaço taxonômico. Mas
enquanto a imaginação, nas identidades imediatas, liga a monotonia do verbo à
policromia da derivação e da retórica, a natureza não pode ser aleatória,
devendo abrigar continuidade, não identidades fortuitas. Só por haver
semelhanças reais na natureza é que a imaginação e a memória podem agrupar
coisas muito ou pouco diferentes.
A imaginação unia, na HN, a continuidade plena da natureza à continuidade
vazia mas atenta da consciência. Por isso não havia uma biologia, pois não
havia a vida, mas seres vivos que se parecem e se dispõem. A vida é, neste
momento, somente um dos caracteres, categoria relativa aos critérios de
classificação. E imprecisa, como o zoófito (animal ou planta?), em questão de
fóssil e de metais. O naturalista é o homem do visível estruturado e denominação
característica, não da vida.
A HN não balbucia uma filosofia da vida, mas das palavras. Dela parte a e
ela retorna para segui-la e mudá-la. A questão crítica, entre Lineu, Locke,
Buffon e Hume era a do fundamento da semelhança e da existência do gênero.
No final do sec. XVIII, a crítica se desloca; enquanto Hume fazia do
problema da causalidade um caso de interrogação geral sobre as semelhanças,
Kant, isolando-a, inverte a questão; em vez de fixar relações de identidade e
distinção sobre o fundo das similitude, ela questiona a síntese do diverso.
No mesmo movimento, a critica da razão se reporta do conceito ao juízo,
da existência do gênero(obtida pela análise das representações) à possibilidade
de ligar as representações entre si, do direito de nomear ao fundamento da
atribuição, da articulação nominal à proposição mesma e ao verbo ser que a estabelece.
Ela se acha então absolutamente generalizada. Em vez de valer somente a
propósito das relações entre natureza e natureza humana, ela interroga a
possibilidade mesma de todo conhecimento.
Daí a vida emerge como objeto distinto, de Kant a Dilthey e Bérgson.
Nenhum comentário:
Postar um comentário