Conceitos Fundamentais da Metafísica - 3a forma do tédio: o chamamento para a possibilitação originária do Dasein

Caracterizada a retenção temporal do tédio profundo como uma implosão da situação, e vista a sua consequência fundamental, que é o severo desnudamento do Dasein, acompanhada do ser-tocado pela recusa no ente na totalidade, eis que Heidegger interpreta, ontologicamente, as possibilidades descortinadas por este fenômeno.

Ao contrário do que possa parecer, em meio a esta quase completa nulidade ôntica, em meio a esta indiferença em face do ente na totalidade, diante da completa falta de razão ou sentido para agir ou não agir, para ser ou não ser, eis que se esconde uma grande oportunidade ontológica para o ser-aí: o tédio profundo é um chamamento inescapável, imperativo, para a possibilitação originária do ser-aí. Isto merece atenção.

As formas anteriores do tédio nos afinam em boa parte da nossa existência situada no ocidente contemporâneo (tomo aqui por ponto de partida que o tédio não só trespassava o Dasein europeu do século XX como também ainda atravessa o Dasein do século XXI no mundo globalizado). Afinados por elas, estamos sempre a buscar o passatempo para a primeira forma do tédio, ou já sempre nos movemos em meio a ele na segunda forma.

Na terceira forma, porém, o passatempo é impossível. O próprio tempo, a temporalidade enquanto horizonte do Dasein, entra em colapso. Não há como evadir-se pelo passatempo.

Poderia parecer, no entanto, que isto abriria uma possibilidade de entregar-se ativamente, proativamente, de forma plena, ao ente na totalidade. O ser-no-mundo, diante da impossibilidade desta temporalidade imprópria que degrada a existência, poderia exibir-se em toda sua pujança, como um engajar-se pleno de sentido, como uma autenticidade e plenitude absolutas, como uma decisão fundada nas mais profundas raízes do ser-aí.

Mas isto e uma aparência. No tédio profundo, o ente na totalidade se recusa, e o único fenômeno que nos toca é a própria recusa enquanto fenômeno, este ‘vácuo’ do ser-aí, este afastar-se de todo ente em razão da implosão do tempo, desta situação que nos situa.

Porém, se o ente como um todo se recusa, se o tempo se colapsa, se o mundo enquanto horizonte delimitado temporalmente e delimitante de nossa abertura ao ser também esta diluído na inefetividade, o que resta ao Dasein? Resta ele mesmo, seu si-próprio.

Assim, ao lado da recusa do ente na totaldiade, fala um chamamento ao Dasein. Fala um anúncio. Este vácuo da recusa não é algo que se justapõe ou sobrepõe ao chamamento: ele é o próprio chamamento. Quando miro nas águas calma de um lago, a reflexão total da luz me recusa a visão do fundo do lago, mas ao mesmo tempo me exibe uma mensagem visual de mim mesmo.

De igual sorte, quando o ente que se recusa deixa este vácuo que me toca, neste vácuo se torna audível a silenciosa mensagem do ser-aí, do meu ser-aí, desnudado de todo engajamento no mundo, de toda referência ao ente, de toda situação no tempo.

Com isto, o tédio profundo abre a possibilidade para aquilo que possibilita o meu ser-aí mais próprio. Afinal, de início e na maioria das vezes, na tranquilidade precipitada e agitada do afazer cotidiano, na dispersão no impessoal, na fuga diante da temporalidade hesitante ou estagnada, o meu Dasein não é, autenticamente. Quando tudo isto se vai, no entanto, resta esta nudez do ser, na qual eu me dou conta de um profundo paradoxo: de que sou, e de que, na impropriedade em que me diluía, não vinha sendo.

Para Heidegger, o deixar vazio, a serenidade vazia provocada pelo ente na totalidade que se recusa, se articula com esta retenção máxima, com este prender-me à implosão da situação, trazendo-me para o interior da amplitude máxima do ente na totalidade.

Isto ocorre porque, na retenção aí vigente, o aguçamento da recusa, ou seja, a nudez cortante do ser-aí, constitui o modo de afinação desta tonalidade afetiva, o tédio profundo. Sentir o frio do ser-aí desnudo, no vácuo completo da recusa, é afinar-se com ele, o tédio. É aí que se revela o caráter temporal do tédio profundo, a ser elucidado no próximo texto.



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